quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

O Vinho dos Trapeiros ( Le vin des chiffoniers )


O Vinho dos Trapeiros

Charles Baudelaire - Trad. Ivan Junqueira

Muitas vezes, à luz de um lampião sonolento
Do qual a chama e o vidro estalam sob o vento,
Num antigo arrabalde, informe labirinto,
Onde fervilha o povo anônimo e indistinto.

Vê-se um trapeiro cambaleante, a fronte inquieta,
Rente às paredes a esqueirar-se como um poeta,
E, alheios aos guardas e alcagüetes mais abjetos
Abrir seu coração em gloriosos projetos.

Juramentos profere e dita leis sublimes
Derruba os maus, perdoa as vítimas dos crimes,
E sob o azul do céu, como um dossel suspenso,
Embriaga-se na luz de seu talento imenso.

Toda essa afeita às aflições caseiras,
Derreada pela idade e farra de canseiras,
Trôpega e curfva ao peso atroz do asco infinito,
Vômito escuro de um Paris enorme aflito,

Retorna, a trescalar do vinho as escorralhas,
Junto aos comparsas fatigados das batalhas,
Os bigodes lembrando insígnias espectrais
Os estandartes, o pendões e arcos triunfais

Erguem-se ante essa gente, ó solene magia!
E na ensurdecedora e luminosa orgia
Dos gritos, dos clarins, do sol e do tambor,
Trazem eles a gloria ao povo ébrio de amor!

Assim é que através da ingênua raça humana
O vinho, esplêndido Pactolo, do ouro emana;
Pela garganta do homem canta ele os seus feitos
E reina por seus dons tal como os reis perfeitos.

E para o ódio afogar e ócio ir entretendo
Desses malditos que em silêncio vão morrendo,
Em seu remors Deus o sono havia criado;
O Homem o Vinho fez, do Sol filho sagrado!

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